Dando continuidade à nossa série de blogs nos quais relembramos e comentamos estudos clínicos que tiveram grande impacto na Hemoterapia, vamos abordar hoje o Platelet transfusion versus standard care after acute stroke due to spontaneous cerebral haemorrhage associated with antiplatelet therapy (PATCH): a randomised, open-label, phase 3 trial, publicado no Lancet em 2016.(1)
A hemorragia intracerebral espontânea não traumática é responsável por 2/3 de todos os acidentes vasculares hemorrágicos (AVCh). Vários estudos indicam que o uso de agentes antiplaquetários está relacionado com pior evolução do AVCh devido ao risco de aumento do seu volume devido à disfunção plaquetária. Neste contexto, do ponto de vista teórico, a transfusão de plaquetas seria uma ferramenta útil no tratamento dos pacientes com AVCh espontâneo, em uso de agentes antiplaquetários.
O objetivo primário deste estudo foi investigar se a transfusão de plaquetas associada ao tratamento padrão, em comparação com o tratamento padrão sozinho, reduz a morte ou a dependência em pacientes em uso de terapia antiplaquetária que evoluíram com AVCh espontâneo. Os desfechos secundários incluíram avaliação da sobrevida em 3 meses e de eventos adversos graves.
Os critérios de inclusão foram: paciente ≥ 18 anos de idade que tiveram AVCh supratentorial não traumático confirmado por imagem em uso de agentes antiplaquetários por ≥ 7 dias antes do AVCh e foram admitidos com pontuação na Escala de Coma de Glasgow entre 8 e 15. Os principais critérios de exclusão foram: transfusão de plaquetas após 6 horas do início dos sintomas ou após 90 minutos de imagem cerebral (ressonância nuclear magnética ou tomografia computadorizada); pontuação na escala de Rankin modificada (mRS) pré-AVCh ≥ 2 ou incapacidade em realizar atividades habituais; hematoma epidural ou subdural, aneurisma ou malformação arteriovenosa; evacuação cirúrgica do AVCh planejada para ocorrer em até 24 horas da admissão; uso de antagonistas da vitamina K ou história de coagulopatia; grande hematoma intraventricular; trombocitopenia; ou morte iminente.
Metodologia: estudo multicêntrico (60 centros clínicos na Holanda, Reino Unido e França), randomizado (sistema computadorizado seguro, baseado na web), cego para os avaliadores de resultados e analistas de dados e aberto para os investigadores locais. Os pacientes (100%) foram acompanhados por 3 meses (análise por intenção de tratamento). Pacientes em uso de inibidores de COX receberam 1 pool (5 doadores) plaquetas e pacientes em uso de inibidores de receptor de ADP receberam 2 pools de plaquetas.
Resultados: entre 02/2009 e 10/2015, 41 centros incluíram 190 pacientes (idade média de 74 anos, 59% homens), sendo 97 no grupo que recebeu tratamento padrão e transfusão de plaquetas e 93 no que recebeu tratamento padrão isolado. As características clínicas de base dos grupos foram similares. Os indivíduos que receberam transfusões de plaquetas apresentaram maior volume de AVCh, edema peri-hematoma, maior mortalidade e dependência em 3 meses. (Tabela 1). Não houve diferença no crescimento mediano do AVCh em 24 horas entre os grupos.
Tabela 1: Transfusão de plaquetas versus tratamento padrão após hemorragia intracerebral espontânea associada à terapia antiplaquetária.(2)
Conclusão dos autores:
A transfusão de plaquetas aumentou o risco de morte ou dependência em comparação com o tratamento padrão em pacientes com hemorragia intracerebral associada à terapia antiplaquetária e não é recomendada para esta indicação na prática clínica.
Comentários:
O PATCH foi o primeiro estudo clínico randomizado e controlado que investigou os efeitos da transfusão de plaquetas no tratamento do AVCh em pacientes em uso de agentes antiplaquetários. Seus resultados porém foram totalmente inesperados, inclusive para os autores que comentaram que a aderência ao tratamento foi adequada, que o número alvo de pacientes a serem incluídos foi alcançado e que, apesar de o estudo ter algumas limitações (tamanho da amostra, desequilíbrio entre algumas variáveis, dentre outros), os seus resultados não podem ser explicados pelo acaso e podem ser atribuídos em parte pelas atividades pro-inflamatórias e pró-trombóticas das plaquetas.
No editorial (3) publicado no mesmo fascículo que a revista, é comentado que “o clínico, quando se depara com uma condição tão devastadora quanto o AVCh, sente-se compelido a usar todas e quaisquer terapias disponíveis, embora às vezes a evidência da eficácia dessas terapias ainda não esteja estabelecida.” O editor comenta ainda que “o uso prévio de terapia antiplaquetária está associado não apenas ao aumento da incidência AVCh, mas também ao aumento das chances de morte após o sangramento” e que apesar de suas limitações, este estudo provê fortes evidências contra o uso rotineiro de transfusão de plaquetas como tratamento de pacientes com AVCh espontâneo após o uso antiplaquetários. Continua explicando que “não está claro por que as plaquetas transfundidas não fornecem o benefício lógico e esperado neste cenário clínico e que embora a justificativa original para a transfusão de plaquetas seja superar o déficit funcional associado à terapia antiplaquetária, consequências imprevistas parecem estar substituindo esse objetivo.” E esclarece que uma possível explicação seria a interface entre a hemostasia e a inflamação, e que as plaquetas têm um papel fundamental neste processo. Além disso, os concentrados de plaquetas contêm citocinas, que podem potencializar a resposta pró-inflamatória endógena e não sendo possível prever as capacidades de agregação e geração de trombina das plaquetas transfundidas. Por fim, ele comenta que “as plaquetas transfundidas podem suprimir a síntese de novas plaquetas e, assim, diminuir a fração de plaquetas jovens (e hemostaticamente mais eficazes) necessárias para superar um déficit antiplaquetário hipotético.
Em 2020 os autores do Estudo PATCH publicaram uma carta ao editor4 com análises secundárias importantes nos quais eles demostram que os resultados negativos associados à transfusão de plaquetas podem ser atribuídos a uma falta de equilíbrio entre o braço de transfusão e o braço de controle detectada após revisão cuidadosa e minuciosa dos exames de imagem realizados antes da randomização. Os pacientes atribuídos ao grupo da intervenção apresentaram AVCh, edema peri-hematoma e volume total de lesão significativamente maior do que aqueles do grupo controle já a admissão. Além disso, mais pacientes no grupo da transfusão foram tratados com um regime de drogas que resulta em maior inibição plaquetária. Essas diferenças basais podem ter aumentado o risco de expansão da hemorragia, independentemente da estratégia de transfusão e fornecem uma hipótese alternativa confiável para as diferenças observadas nos resultados entre os grupos de estudo.
Fato é que uma das maiores lições do estudo PATCH é que mesmo ensaios clínicos bem projetados e executados com primazia podem nos levar a resultados parciais. Em última análise, a estratégia de transfusão ideal para pacientes que desenvolvem AVCh enquanto fazem uso de medicamentos antiplaquetários ainda não está definida e exigirá a realização de estudos adicionais.
Até a próxima!
Equipe erytro.
Bibliografia consultada:
1 Baharoglu M.I., Cordonnier C., Al-Shahi Salman R., et al. PATCH Investigators. Platelet transfusion versus standard care after acute stroke due to spontaneous cerebral haemorrhage associated with antiplatelet therapy (PATCH): a randomized, open-label, phase 3 trial. Lancet. 2016 Jun 25;387(10038):2605-2613. DOI: 10.1016/S0140-6736(16)30392-0
2 Barer D. In ICH associated with antiplatelet therapy, platelet transfusion increased death or dependence. Ann Intern Med. 2016 Aug 16;165(4):JC19. DOI: 10.7326/ACPJC-2016-165-4-019
3 Prodan C.I. Platelets after intracerebral haemorrhage: more is not better. Lancet. 2016 Jun 25;387(10038):2577-2578. DOI: 10.1016/S0140-6736(16)30478-0
4 Eke O., Shanechi M., Gottlieb M. Efficacy of platelet transfusion for acute intracerebral hemorrhage among patients on antiplatelet therapy. CJEM. 2018 Oct;20(S2):S78-S81. DOI: 10.1017/cem.2017.438
5 Baharoglu M.I., Al-Shahi Salman R., Cordonnier C., et al. PATCH trial: explanatory analyses. Blood. 2020 Apr 16;135(16):1406-1409. DOI: 10.1182/blood.2019003298
6 Gehrie E.A., Tobian A.A.R. PATCHing platelet data to improve transfusion. Blood. 2020 Apr 16;135(16):1309-1310. DOI: 10.1182/blood.2020005384