Falaremos hoje do Platelet Transfusion Trigger Trial.1 Trata-se de estudo multicêntrico, prospectivo, randomizado que envolveu 21 centros. Seu objetivo primário foi comparar a frequência e a severidade da hemorragia nos pacientes que receberam transfusão profilática de plaquetas conforme um dos dois protocolos: a) grupo estudo: transfusão profilática com contagem plaquetária < 10.000/µL, ou 20.000/µL, se temperatura corporal > 38º C, presença de sangramento recente ou quando indicado, antes da realização de procedimentos invasivos; b) grupo controle: transfusão profilática com contagem plaquetária < 20.000/µL. O objetivo secundário foi comparar o número de unidade de plaquetas e de hemácias transfundidas, assim como as taxas de remissão completa e de mortalidade.
O tamanho da amostra (total de 230 pacientes) foi calculado com base no histórico de 1298 pacientes consecutivos (exceto leucemia promielocítica – LPA) acompanhados pelo Gruppo Italiano Malattie Ematologiche Maligne dell’Adulto (GIMEMA), cujos dados mostravam que 30% dos pacientes apresentavam sangramento classificado pela Organização Mundial de Saúde (OMS, comentada no nosso blog de 09/02/21) como grau 2 e 10% como grau 3. O recrutamento dos pacientes ocorreu entre março de 1994 e 1996 (2 anos).
Os critérios de inclusão foram: a) diagnóstico de leucemia mieloide aguda (LMA), exceto LPA; b) pacientes internados em hospitais para o primeiro ciclo de quimioterapia para indução da remissão; c) idade entre 16 e 70 anos. Os critérios de exclusão foram: a) LMA secundária ou LPA; b) histórico de transfusão antes do início do tratamento da LMA; c) recusa em participar.
A randomização considerou o fator centro de tratamento. Os pacientes foram tratados com o mesmo protocolo quimioterápico, receberam concentrado de hemácias (CH) com Hb < 8g/dL e não receberam medicamentos que alteram a função plaquetária.
A evolução clínica foi realizada diariamente até a remissão completa, resistência à quimioterapia, contagem plaquetária > 100.000/µL ou óbito, o que ocorresse primeiro.
Na avaliação estatística foram utilizados softwares para confecção de curvas atuárias. O teste de Wilcoxon foi utilizado para comparar o número de plaquetas transfundidas nos dois grupos e considerado p < 0.05 para indicar significância estatística.
Principais resultados:
Dos 276 pacientes que foram randomizados, 92.4% completaram o seguimento. As características clínicas e os principais resultados do estudo estão demonstrados na Tabela 1.
Tabela 1: Principais características e resultados do estudo (modificada de 1):
O grupo com limite de 10.000 plaquetas/µL recebeu 21.5% menos transfusões do que o grupo controle (p=0.001). O número unidades de CH transfundida entre os grupos foi similar. No grupo estudo, 72% das transfusões ocorreram com contagem plaquetária < 10.000/µL; 22.6% em níveis superiores a esse, devido a fatores de risco adicionais, previstos no protocolo e em 5.4% dos casos houve violação do protocolo (2% do grupo controle).
Não houve diferença entre o número de pacientes com sangramento maior (p = 0.41) ou que entrou em remissão (p = 0.63). Houve um episódio de hemorragia cerebral fatal em paciente do grupo de estudo; entretanto, o início do episódio ocorreu com contagem plaquetária de 32.000/µL. Nenhuma outra morte foi atribuída a sangramento.
A curva atuarial de sobrevida em até 49 dias da admissão, na qual a morte por qualquer causa foi incluída, não demostrou diferença entre os dois grupos (p = 0.31). Quando o episódio de hemorragia foi avaliado conforme o tipo (Tabela 1), o sangramento gastrointestinal foi mais frequente no grupo estudo. Entretanto, a mediana de episódios de sangramento maior por paciente foi similar entre os grupos [39 (29%) em 135 pacientes do grupo estudo versus 33 (27%) em 120 pacientes do grupo controle]. Os autores consideraram que a proporção de pacientes que apresentaram sangramento maior é uma estimativa válida do sucesso da profilaxia contra a hemorragia. A curva atuarial que avaliou a proporção de pacientes sem sangramento maior, não mostrou diferença entre os grupos (p = 0.54) (Figura 1).
Figura 1: Proporção de pacientes sem sangramento maior. O risco relativo de sangramento maior foi 1.1 no grupo com limite de 10.000 plaquetas/µL (95% intervalo confiança, 0.7 – 2) quando comparado com o grupo com limite de 20.000 plaquetas/µL.
Fonte: Rebulla P et al. N Engl J Med 1997;337:1870-1875.
Discussão e conclusão:
A transfusão de plaquetas é um dos pilares do tratamento de suporte dos pacientes em quimioterapia citotóxica. Estudos não randomizados, publicados anteriormente a esse, indicavam que limites < 20.000 plaquetas/µL eram seguros para se indicar transfusão em um vasto número de pacientes. Esses dados estavam em acordo com outros, previamente descritos, que indicavam que os sangramentos espontâneos significativos só ocorrem quando a contagem plaquetária cai a níveis inferiores a 5.000 plaquetas/µL e que a frequência e a gravidade do sangramento em pacientes com LMA não depende apenas da contagem plaquetária. Esses dados em conjunto levaram aos autores escolherem o valor de 10.000 plaquetas/µL como limite para se indicar transfusão profilática de plaquetas, em pacientes estáveis, sem fatores de risco adicional.
Apesar de os pacientes do grupo estudo terem apresentado maior frequência de sangramento gastrointestinal, não houve diferença entre a mediana de episódios de sangramento maior por paciente ou entre a demanda de transfusão de CH dos dois grupos. Os resultados encontrados corroboraram os dados já publicados e demostraram que o limite proposto é seguro, mas que o julgamento e a monitorização clínica cuidadosa dos pacientes são fundamentais na prática transfusional.
Comentários:
Em 2015, o grupo Cochrane publicou uma revisão sistemática2 na qual foram incluídos 3 estudos clínicos randomizados, que avaliaram 499 participantes. Os estudos compararam o limite de 10.000 plaquetas/µL versus um maior de 20.000 ou 30.000 plaquetas/µL, foram realizados entre 1991 e 2001 e avaliaram pacientes com perfis comparáveis. Foi ponderado que a qualidade metodológica desses estudos, no geral, conforme a metodologia GRADE foi baixa em diferentes desfechos. Por conta disso, os autores concluíram que em pacientes com doença hematológica que estão trombocitopênicos em decorrência de quimioterapia mielossupressora ou transplante de células progenitoras hematopoéticas: a) há evidência de baixa qualidade que o limite de 10.000 plaquetas/µL não está associado a aumento do risco de sangramento quando comparado a limites de 20.000 ou 30.000 plaquetas/µL; b) há evidência de baixa qualidade que a utilização do limite de 10.000 plaquetas/µL está relacionada com a redução do número de episódios transfusionais. Os autores comentam ainda que, como essa é a melhor evidência disponível, é razoável continuar utilizar o limite de 10.000 plaquetas/µL para se indicar a transfusão em pacientes estáveis, com plaquetopenia induzida por quimioterapia, sem fator de risco adicional de sangramento.
Em dezembro de 2020, foi publicado no material educacional da Sociedade Americana de Hematologia, um artigo que discute quão bem as plaquetas previnem o sangramento.3 O autor chama atenção para dados da análise secundária do estudo PLADO, comentado no nosso blog de 26 de janeiro de 2021, que utilizou o limite de 10.000 plaquetas/µL para se indicar transfusão em 1.272 pacientes por 24.000 dias de observação hospitalar. Esses dados demostraram que episódios de sangramento ocorreram em 25% dos dias do estudo quando a contagem plaquetária era ≤ 5.000/µL e em 17% dos dias do estudo quanto a contagem plaquetária era > 5.000/µL (p < 0.001). Esses dados sugerem que o risco de sangramento possui correlação com a contagem plaquetária e que não parece mudar quando essa está acima de 5.000/µL, o que é consistente com os dados que estimam que aproximadamente 7.000 plaquetas/µL são necessárias, por dia, para manter a integridade vascular de pacientes estáveis e sem fator de risco adicional de sangramento. O autor lembra que além da contagem plaquetária é importante considerar outros fatores na determinação do risco de sangramento individualmente. Aumento do consumo de plaquetas e/ou do risco de sangramento têm sido relatados em pacientes com febre, sepses, infecção, em uso de terapia antifúngica ou anticoagulante, com esplenomegalia, coagulopatia, com doença do enxerto contra-o-hospedeiro ou na síndrome de obstrução sinusoidal. Neste grupo de pacientes, deve-se utilizar um limite mais alto (exemplo: 20.000 plaquetas/µL) ou transfusões mais frequentes de forma a garantir que o nadir de plaquetas antes da próxima transfusão se mantenha acima de 5.000 plaquetas/µL. Em pacientes ambulatoriais, questões logísticas também devem ser consideradas. O autor ressalta ainda que mesmo com todos esses cuidados ainda há uma alta incidência de sangramento espontâneo nos pacientes com plaquetopenia induzida pela quimioterapia e adverte que nem a utilização de limites ou de doses mais elevadas alteram a incidência de sangramento e comenta sobre a importância dos estudos, atualmente em andamento, que estão avaliando o papel da utilização de agentes antifibrinolíticos em pacientes plaquetopênicos.
Até a próxima!
Equipe erytro.
Bibliografia consultada:
1) Rebulla P., Finazzi G., Marangoni F., et al. The threshold for prophylactic platelet transfusions in adults with acute myeloid leukemia. N Engl J Med 1997;337:1870-5. DOI: 10.1056/NEJM199712253372602; 2) Estcourt L. J., Stanworth S. J., Doree C., et al. Comparison of different platelet count thresholds to guide administration of prophylactic platelet transfusion for preventing bleeding in people with haematological disorders after myelosuppressive chemotherapy or stem cell transplantation. Cochrane Database Syst Rev. 2015 18;11:CD010983. DOI: 10.1002/14651858.CD010983.pub2 3) Triulzi D.J. How well do platelets prevent bleeding? Hematology Am Soc Hematol Educ Program 2020: 518–522. https://doi.org/10.1182/hematology.2020000136