A transfusão de sangue é uma das terapêuticas mais utilizadas em pacientes internados e submetidos a grandes cirurgias. Embora tenha benefícios inegáveis, não é isenta de riscos e efeitos colaterais de gravidades variáveis. O Patient blood management (PBM) é uma abordagem multidisciplinar e sistematizada de gerenciamento do sangue do paciente, baseada em evidências, que busca minimizar as perdas sanguíneas, otimizar a hematopoese, maximizar a tolerância à anemia e evitar transfusões desnecessárias, visando a melhor evolução do paciente, redução de custos e otimização do estoque de sangue2.
A transfusão autóloga é a técnica de transfusão que utiliza o sangue do próprio paciente. Sua principal vantagem é a redução dos riscos associados à transfusão alogênica. Os três métodos de transfusão autóloga são a pré-doação, a reinfusão do sangue coletado no campo cirúrgico por equipamentos específicos e a hemodiluição normovolêmica aguda (HNA). Essa última consiste na retirada, imediatamente após a indução da anestesia, de um pré-determinado volume de sangue, que é reinfundido durante o curso da cirurgia ou, preferencialmente, no seu final. A volemia é mantida pela reposição simultânea de solução cristalóide, colóide ou uma associação de ambas. Esse método tem, em relação aos demais, as seguintes vantagens: a) de ser tecnicamente mais simples, não exigir equipamentos sofisticados e ter menor custo; b) reduzir a perda real de sangue durante a cirurgia, pois há uma redução da concentração de eritrócitos na circulação sanguínea durante a cirurgia; c) HNA é o único método que fornece sangue autólogo fresco, no qual a função das plaquetas e dos fatores de coagulação raramente é afetada e poucos glóbulos vermelhos são perdidos; d) pode ser utilizada em pacientes nos quais a reciclagem de sangue no campo cirúrgico é controversa, como é o caso da cirurgia oncológica.
A HNA está indicada em cirurgias de médio e grande porte que podem requerer transfusões, mas está contraindicado nos pacientes com hemoglobina <11g/dl, doentes renais crônicos com clearence de creatinina menor que 60, atividade isquêmica de algum tecido ou órgão, insuficiência cardíaca com fração de ejeção inferior a 45%, hemoglobinopatia e distúrbios da coagulação2,3.
A quantidade de sangue retirada varia entre duas e três bolsas, de aproximadamente 500ml cada, como descrito no cálculo abaixo. Esse sangue deve ser mantido em temperatura de 20 a 24°C, por até 8 horas da coleta2,5. Na prática, todo procedimento deve ser consentido pelo paciente, descrito e aprovado pelo médico responsável técnico, se possível, o médico hematologista da Agência Transfusional e/ou do Comitê Transfusional. A bolsa utilizada na coleta é estéril e possui o anticoagulante CPDA-1, deve-se realizar a homogeneização do sangue com o preservante durante todo procedimento de coleta. Cada unidade de sangue coletado deve ser etiquetada com o nome do paciente, número de registro, horário da retirada do sangue e número de sequência. É importante lembrar que é obrigatório o uso do equipo específico para transfusão e que a reinfusão de unidades de sangue total devolve ao paciente hemácias, fatores de coagulação, plaquetas e deve ser feita na ordem inversa, ou seja, a última bolsa coletada é a primeira a ser transfundida, devido aos fatores de coagulação e plaquetas que estarão em maiores concentrações/mais ativas.
O volume calculado parece ser alto, porém baixos volumes de HNA não levam ao resultado clínico desejado, que é reduzir transfusão alogênica. Um estudo retrospectivo de pacientes submetidos à cirurgia cardíaca e HNA, quando o volume retirado era de aproximadamente 450ml (400-800ml), não houve diferença significativa nas taxas de transfusão perioperatória de hemácias em comparação com o grupo que não realizou a técnica5. Outra preocupação relevante na HNA é a coagulopatia dilucional causada pelo procedimento, em especial nos pacientes submetidos a by-pass cardiopulmonar. No entanto, um estudo prospectivo, comparou as alterações da coagulação sanguínea de 80 pacientes (40 pacientes realizaram HNA e 40 não realizaram). As avaliações incluíam exames convencionais de coagulação e tromboelastometria (TEG com calcificação da amostra), em duas medições: 1) após a diluição e antes do by-pass e 2) após reinfusão. Os resultados mostraram que todos os testes de coagulação se alteraram no tempo 1 no grupo do HNA, porém sem maior incidência de sangramento, mas houve normalização dos testes após a reinfusão (tempo 2), exceto pelo fibrinogênio, que manteve um pouco mais baixo que o valor inicial7.
Em tempos de PBM e respeitando a decisão de alguns pacientes que não aceitam receber transfusão alogênica, a HNA pode ser uma ferramenta útil na realização de cirurgias de grande porte, com custo baixo e baixo risco ao paciente.
Espero que tenham gostado.
Até a próxima!
Equipe Erytro.
Bibliografia consultada:
- Zhou J. A review of the application of autologous blood transfusion. Braz J Med Biol Res. 2016 Aug 1;49(9):e5493.
- Macedo MCMA, Biagini S, Montano-Pedroso JC, Ribeiro G, Junior JFCM, Rizzo SRCP, Rabello G, Junior DML. Consensus of the Brazilian association of hematology, hemotherapy and cellular therapy on patient blood management: Implementation of Patient Blood Management (PBM). Hematol Transfus Cell Ther. 2024 Apr;46 Suppl 1(Suppl 1):S8-S11.
- Center for Heath Sciences Oklahoma State University Acute normovolemic hemodilution. Disponível em: https://medicine.okstate.edu/gme/quality-symposium/posters-2022/poster-23.pdf
- Ming Y, Zhang F, Yao Y, Cheng Z, Yu L, Sun D, Sun K, Yu Y, Liu M, Ma L, HuangYang Y, Yan M. Large volume acute normovolemic hemodilution in patients undergoing cardiac surgery with intermediate-high risk of transfusion: A randomized controlled trial. J Clin Anesth. 2023 Aug;87:111082. doi: 10.1016/j.jclinane.2023
- MINISTÉRIO DA SAÚDE (Brasil), Gabinete do Ministro. Portaria de Consolidação nº 5. Consolidação das normas sobre as ações e os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde. ANEXO IV – DO SANGUE, COMPONENTES E DERIVADOS. Fica instituído o regulamento técnico de procedimentos hemoterápicos. Brasília: Diário Oficial da União, poder Executivo; 03 out 2017. Seção XIV.
- Yoshinaga K, Iizuka Y, Sanui M, Faraday N. Low-Volume Acute Normovolemic Hemodilution Does Not Reduce Allogeneic Red Blood Cell Transfusion in Cardiac Surgery in the Modern Era of Patient Blood Management: A Propensity Score-Matched Cohort Study. J Cardiothorac Vasc Anesth. 2024 Feb;38(2):394-402.
- Smith BB, Nuttall GA, Mauermann WJ, et al. Coagulation test changes associated with acute normovolemic hemodilution in cardiac surgery. J Card Surg. 2020 May;35(5):1043-1050. DOI: 10.1111/jocs.14532