História da hemoterapia no mundo e no Brasil

por | set 10, 2020

A História da Hemoterapia moderna inicia no século XVII com transfusões entre animais, entre animais e humanos e entre humanos de forma totalmente empírica, colecionando mais insucessos que sucessos. Apenas em 1901, Karl Landsteiner, com a descoberta do grupo sanguíneo ABO. Outro marco importante na história da hemoterapia foi na década de 80 com os avanços na segurança transfusional devido às infecções transmitidas pelo sangue. Atualmente, atuamos na terapia celular na produção dos carT cell e no tratamento do novo coronavírus (COVID-19), com plasma de pacientes convalescentes.

 

A transfusão de sangue tem dois períodos: um não científico, e outro científico, tendo 1901 como divisor das “eras”. Apesar de haver descrições bíblicas sobre sangue e circulação sanguínea, apenas em 1665 foi descrita a primeira transfusão de sangue bem-sucedida. Registrada pelo médico Richard Lower, que ocorreu na Inglaterra e foi realizada entre cães, mantendo-os vivos após a transfusão. Embora não haja publicação formal, em 1795, na Filadélfia, o médico americano Philip Syng Physick realiza a primeira transfusão de sangue humano, porém, apenas em 1818, James Blundell, um obstetra britânico, realiza a primeira transfusão de sangue bem-sucedida em humano, uma paciente com hemorragia pós-parto1. Ele fez o procedimento utilizando o marido da mulher como doador, extraindo sangue do braço do homem com uma seringa. Blundell também elaborou vários instrumentos (figura) para a realização de transfusões e propôs indicações racionais de sangue 1,2.

 

Já entre 1873-1880, médicos americanos fazem transfusão de leite (de vacas, cabras e humanos) malsucedidas e, em 1884, a infusão de salina substitui o leite como um “substituto sanguíneo” devido ao aumento da frequência de reações adversas ao leite1. Em 27 de setembro de 1879, há o primeiro relato de hemoterapia brasileira, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, de autoria de José Vieira Marcondes, filho legítimo do Barão e da Baronesa de Taubaté. Porém, o procedimento foi rejeitado por ser muito polêmico, entretanto, foi sustentado pela Faculdade de Medicina da Bahia2.

 

Em 1901, Karl Landsteiner, um médico austríaco, descobre os três primeiros grupos sanguíneos humanos: A, B e C. O tipo sanguíneo C foi posteriormente alterado para O. A herança mendeliana de grupos sanguíneos foi observada por Ottenberg que reconheceu a utilidade “universal” dos doadores do grupo O. E os primeiros relatos dos testes pré-transfusionais ocorreram em 1907 quando Hektoen sugeriu que a segurança transfusional pode ser melhorada cruzando sangue entre doadores e pacientes para excluir misturas incompatíveis.

 

Em 1902, Alfred Decastello e Adriano Sturli acrescentam o grupo sanguíneo AB, finalizando a classificação ABO1. Já em 1912, Roger Lee, um médico visitante do Hospital Geral de Massachusetts, demonstra que é seguro transfundir sangue do grupo O a pacientes de qualquer grupo sanguíneo, e que sangue de todos os grupos pode ser dado aos pacientes do grupo AB, surgindo então os termos “doador universal” e “destinatário universal”1.

 

Em 1939/40, o sistema de grupos sanguíneos Rh é descoberto por Karl Landsteiner, Alex Wiener, Philip Levine e R.E. Stetson, sendo reconhecido como a causa da maioria das reações de transfusão. A identificação do fator Rh toma seu lugar junto à descoberta da classificação ABO como um dos avanços mais importantes no campo da hemoterapia. Os demais grupos sanguíneos continuaram sendo descobertos após 1945, com o descobrimento do teste de antiglobulina por Coombs, Mourant e Race em Cambridge, teste esse que é conhecido até hoje pelo seu epônimo1,3.

 

A necessidade de manter o sangue disponível fora do doador, estocado, era grande e só foi possível após a descoberta, em 1915, por Richard Lewinsohn, em Nova Iorque, do citrato de sódio de 0,2% como anticoagulante. O primeiro Serviço de Transfusão de Sangue (STS) foi o “Voluntary Service”, em 1921, em Londres, patrocinado pela Cruz Vermelha Britânica. O STS demonstrou sua eficiência, principalmente, na Primeira Guerra Mundial, ajudando a recuperar pacientes com hemorragias, traumatizados e em estado de choque. Já na eclosão da Segunda Guerra Mundial, o STS proporcionou um grande estímulo para o desenvolvimento de serviços de transfusão de sangue. Com isso, durante a guerra civil espanhola (1936±39), Federico Duran Jordan, um médico de Barcelona, organizou um banco de sangue composto exclusivamente de sangue de doadores do grupo O que poderia ser transportados para onde fosse necessário. Em 1937, foi criado o primeiro banco de sangue em um hospital de Chicago por Bernard Fantus e, em 1940, Edwin Cohn (Boston) desenvolve um método para fracionamento de proteínas plasmáticas1,3.

 

Aqui no Brasil, o Serviço de Transfusão de Sangue, fundado no Rio de Janeiro, em 1933, aliando à assistência médica, teve enfoque científico voltado ao exercício da hemoterapia e às transfusões de sangue de forma geral. O sucesso desse modelo e a eficiência do atendimento resultaram na criação, em 1937, de várias filiais em nosso país2. Em 1961, o papel da plaqueta concentrado na redução da mortalidade por hemorragia em pacientes com câncer é reconhecido. Nos Estados Unidos, em 1950, Carl Walter e W.P. Murphy Jr. apresentam o saco plástico para coleta de sangue, substituindo as garrafas de vidro quebráveis1.

 

Entre 1962-1965, o primeiro concentrado de fator anti-hemofílico para tratar distúrbios de coagulação em pacientes com hemofilia é produzido. Em 1969, S. Murphy e F. Gardner demonstram a viabilidade de armazenar plaquetas à temperatura ambiente, revolucionando a terapia de transfusão de plaquetas1.

 

Nos anos 50, em nosso país, o fato mais importante foi a fundação da Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (SBHH). Também em 1950 foi promulgada a lei nº 1075, de 27 de março de 1950, que dispõe sobre a Doação Voluntária de Sangue2. Em 1964, o Ministério da Saúde criou um grupo de trabalho para estudo e regulação disciplinadora da Hemoterapia no Brasil, que resultou na formação da Comissão Nacional de Hemoterapia, em 1965, presidida pela Dra. Maria Brasília Leme Lopes e com representação da SBHH pelos Drs. Oswaldo Mellone, Francisco Antonáscio e, posteriormente, Jacob Rosenblit2. Em 1979, o então presidente da SBHH, Celso Carlos de Campos Guerra, inconformado com a situação das doações de sangue em alguns serviços do Brasil, muitas vezes realizadas por presidiários em troca de cigarros, ou por mendigos em busca da remuneração, estimulou e liderou diversos colegas, em uma cruzada por todo o país, para a extinção da doação remunerada de sangue no Brasil2.

 

Em 1961, com a Cooperação Brasil-França e o Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados, no período de 1964 a 1979, a Hemoterapia no Brasil tinha legislação e normatização adequadas, porém ainda iniciais, que defendiam as atividades hemoterápicas e uma política de sangue consistente. Em 1979, com a criação do Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados (Pró-Sangue), com a finalidade de regularizar a situação da hemoterapia brasileira. Surgem os Centros de Hematologia e Hemoterapia – os hemocentros que são espalhados nas capitais do Brasil e as portaria de decretos ministeriais norteavam as decisões hemoterápicas. Entre os muitos desafios, o de implantar a doação sistemática de sangue e pôr fim à doação remunerada em todo pais2.

 

No início de 1980, com o crescimento da terapia de componentes, produtos para distúrbios de coagulação e troca de plasma para o tratamento de doenças autoimunes, bancos de sangue hospitalares e comunitários entram na era da Medicina de Transfusional, na qual médicos treinados especificamente na transfusão de sangue participam ativamente do atendimento ao paciente1.

 

A década de 80 é marcada pelas infecções transmitidas pelo sangue e as modificações nas ações em hemovigilância no Brasil e no mundo. Em 1981, o primeiro caso de Síndrome da Deficiência Imunológica Adquirida (AIDS) é relatado e, em 1984, o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) é identificado como causador da AIDS. Apenas em 1985, a Food and Drugs Administration (FDA) aprova testes diagnóstico para o HIV (ELISA). Ainda anos 80, no Brasil, cerca de 2% dos casos de AIDS eram transmitidos por transfusão e mais de 50% dos hemofílicos apresentavam-se infectados pelo vírus HIV. O aparecimento da AIDS introduziu novos procedimentos, tais como: a substituição da doação anônima pela personalizada, o incremento de todos os métodos de autotransfusão e rigor no uso dos hemocomponentes. Em 1989, começa o teste para anti-HTLV-I em sangues doados. Em 1990, há a introdução do primeiro teste específico para hepatite C, a principal causa de hepatite “não-A e não-B”. Em 1992, implementação de testes de sangue do doador para anticorpos HIV-1 e HIV-2, em seguida o teste de antígeno p24 do HIV. Embora o teste não feche completamente a janela do HIV, encurta o período da janela imunológica aumentando a sensibilidade do teste. Iniciam, então, as campanhas de busca de possíveis pacientes portadores de hepatite C que possam ter se contaminado através de transfusões de sangue antes de julho de 1992. Os estabelecimentos de sangue começam a usar testes de amplificação de ácido nucleico (NAT) em 1999-2002. Porém, no Brasil, apenas em 2013 o NAT se torna um teste obrigatório em todos hemocomponentes produzidos no país1,2.

 

A Constituição Federal brasileira de 1988 inclui no artigo 199, proibindo toda e qualquer forma de comercialização do sangue ou de seus derivados, essa proibição, luta liderada pelo cartunista e escritor mineiro Henfil, irmão de Betinho. Ambos eram hemofílicos, politransfundidos, acabaram, morrendo de AIDS transmitida pela transfusão de sangue. A Lei Federal n.° 10.205, promulgada em março de 2001, regulamentou o parágrafo 4 do artigo 199 da Constituição Federal, que trata sobre coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação de sangue, seus componentes e derivados.

 

Em 2005, a Associação Americana de Bancos de sangue (AABB) solicita que as plaquetas sejam testadas para avaliação do crescimento bacteriano. Em 2014, a FDA nos Estados Unidos aprova primeiros sistemas de inativação de patógenos para plaquetas e plasma, porém, no Brasil não há obrigação dessas tecnologias que previnem a transfusão de concentrados de plaquetas com contaminação bacteriana1,2.Em 2017, a FDA aprova as duas primeiras terapias de células T do receptor quimérico (CAR) para tratar o câncer1.

 

No Brasil, a recomendação é que o plasma de convalescente de COVID seja utilizado apenas em protocolos clínicos e se o uso experimental do plasma convalescente, sob responsabilidade médica, deve seguir os requisitos de Boas Práticas de Serviços de Saúde e de Segurança do Paciente, sendo os resultados devidamente documentados para que possam ser usados em futuros estudos científicos.

 
 

Equipe erytro

 

Bibliografia consultada:

  1. http://www.aabb.org/tm/Pages/highlights.aspx

  2. JUNQUEIRA, Pedro C.; ROSENBLIT, Jacob and HAMERSCHLAK, Nelson.História da Hemoterapia no Brasil. Bras. Hematol. Hemoter. [online]. 2005, vol.27, n.3

  3. Giangrande, P.L.F. (2000), The history of blood transfusion. British Journal of Haematology, 110: 758-767.

  4. Statement on FDA Announcement of Emergency Use Authorization for CCP.

  5. BRASIL, Ministério da Saúde. BRASIL, Ministério da Saúde. Aspectos de Hemovigilância Relacionados ao Uso de Plasma de Convalescente para Tratamento de COVID-19, disponível: nota técnica nº 10/2020/sei/ghbio/ggmon/dire5/anvisa

  6. NOTA TÉCNICA Nº 33/2021/SEI/GSTCO/DIRE1/ANVISA. Atualização das recomendações sobre o uso de plasma de doador convalescente para o tratamento da Covid-19 e a doação deste po de plasma por indivíduos vacinados contra a Covid-19

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