OUTUBRO 18, 2023
Entende-se por leucorredução universal a aplicação rotineira da desleucocitação, como um passo do processamento de todas as unidades de concentrado de hemácias (exceto as sabidamente Hb S positivas) e de concentrado de plaquetas antes do armazenamento. Usualmente este processo é realizado por meio de kits de coleta de sangue que possuem filtros acoplados (filtros in line) e pode ser realizado a fresco (até 8h após a coleta), overnight (até 24 h da coleta) ou, no caso do pool de plaquetas, em até 48h após a coleta.
Esta rotina começou a ser implementada em 1998 em alguns países como o Canadá e a França, com o objetivo de melhorar a segurança transfusional. Outros países como o Reino Unido, Portugal e Irlanda o fizeram principalmente por conta da hipótese teórica de redução da transmissão transfusional do Príon causador da variante da Encefalopatia Espongiforme Humana (variante da Doença de Creutzfeldt-Jakob – vCJD). No Brasil ela já foi implementada em alguns serviços públicos e privados e tem como principal fator limitador o custo do processo.
A desleucocitação dos hemocomponentes celulares tem vantagens conhecidas e bem estabelecidas na literatura. No anexo IV da Portaria de Consolidação número 5 do Ministério da Saúde constam as seguintes indicações: a) Prevenir a reação febril não hemolítica aguda (RFNH) por meio da redução da frequência e da severidade das reações; b) reduzir a transmissão transfusional do citomegalovírus (CMV); c) reduzir a aloimunização leucocitária, ou seja, contra os antígenos do complexo de histocompatibilidade humano (HLA). Outras indicações descritas na literatura incluem: a) redução do risco infeccioso associado à imunomodulação (TRIM, do inglês transfusion related immunomodulation); b) redução da disfunção orgânica, do risco de infecção e da mortalidade em pacientes, especialmente os submetidos à cirurgia cardíaca; c) redução do risco de transmissão de bactérias por transfusão, o que é especialmente interessante por ocasião do uso dos recuperadores intraoperatórios de sangue (RIOS), popularmente conhecidos como Cell Saver em cirurgias potencialmente contaminadas; d) redução do risco de transmissão de outros agentes infecciosos como o Príon causador da vCJD, o protozoário causador da doença de Chagas, de outros vírus leucotrópicos, como por exemplo, o HTLV I/II, o EBV (Epstein Barr), o HHV-8 (herpes vírus -8). Nestes casos, é importante que a desleucocitação seja realizada antes da desintegração dos leucócitos com a liberação dos organismos intracelulares, ou seja, o mais precocemente possível, idealmente em até 72h; e) redução do risco da doença do enxerto contra-o-hospedeiro pós transfusional (DECH-PT) e da lesão pulmonar aguda relacionada com a transfusão (TRALI, do inglês, transfusion related acute lung injury); f) redução da disseminação sistêmica de células neoplásicas, por ocasião do uso dos RIOS em grandes cirurgias em pacientes oncológicos.
A RFNH possui três etiologias: a) o reconhecimento imune dos leucócitos do doador por anticorpos antileucócitários do receptor, que é o mecanismo da RFNH relacionada com a transfusão de concentrados de hemácias (CH), mas também pode estar associado com a transfusão de plaquetas. Nesse mecanismo, há necessidade de sensibilização prévia. Ele explica o porquê este tipo de reação é mais frequente nos pacientes politransfundidos; b) a transferência passiva de citocinas inflamatórias produzidas pelos leucócitos do doador durante o armazenamento dos hemocomponentes. Esse é o principal mecanismo da RFNH relacionada à transfusão de plaquetas, sendo importante esclarecer que a temperatura de armazenamento das plaquetas entre 20 e 24º C favorece a liberação dessas citocinas; c) a destruição imune de plaquetas incompatíveis do doador por anticorpos do receptor. A incidência de RFNH varia na literatura entre 0,5 e 6% para o CH e 1,7 a 38% para as plaquetas, sendo mais frequente nos pacientes previamente sensibilizados, ou seja, as mulheres multíparas e os pacientes politransfundidos. Entretanto, nos países que implantaram a leucorredução universal, esta incidência caiu para 0,1 a 1%.
O CMV é um herpes vírus endêmico em todo o mundo com alta prevalência populacional sendo que a sua prevalência aumenta com a idade. Estima-se que 65 a 96,4% dos brasileiros já tiveram contato com este vírus, que é causador de uma doença potencialmente severa em pacientes imunossuprimidos ou em fetos e recém-nascidos. Os dois principais mecanismos de prevenção da transmissão transfusional do CMV (TT-CMV) são o uso de hemocomponentes coletados de doadores soronegativos e o uso de hemocomponentes desleucocitados o mais precocemente possível. Os principais beneficiários do uso de hemocomponentes desleucocitados visando a prevenção da TT-CMV são os indivíduos em que esta infecção pode ser muito grave (ex.: fetos, recém-nascidos, transplantados, indivíduos com a síndrome da imunodeficiência adquirida – AIDS) ou, para a prevenção da forma congênita da doença (gestantes com sorologia negativa ou desconhecida para CMV).
A redução da aloimunização HLA é importante para reduzir a refratariedade à transfusão de plaquetas, o que se aplica a todos os pacientes que têm potencial de receber múltiplas transfusões de plaquetas como, por exemplo, os portadores de doenças hematológicas que cursam com plaquetopenia (diminuição da quantidade) ou plaquetopatia (alteração da função) e os pacientes cirróticos. Ela também é importante para a prevenção da rejeição humoral aguda em pacientes com potencial de serem submetidos ao transplante de órgãos sólidos especialmente o rim e o coração e à prevenção da reação hemolítica mediada por HLA, principalmente em pacientes portadores de anemias hemolíticas.
Além do custo do processo de desleucocitação, as principais desvantagens do uso da leucorredução incluem a reação hipotensiva, que decorre do acúmulo de bradicinina gerada durante a filtração, especialmente se em beira de leito e a não possibilidade de uso em CH Hb S positivo.
Considerando todas as vantagens da utilização da leucorredução universal, esperamos que o número de serviços que adotam esta prática possa crescer no Brasil a fim de beneficiar o maior número possível de pacientes.
Até a próxima!
Equipe Erytro. Apoio técnico científico da Fresenius Kabi para a sua realização. Bibliografia consultada:
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