Qual a melhor estratégia de transfusão de plaquetas em pacientes onco-hematológicos?

por | ago 17, 2021

Dando continuidade à nossa série de blogs nos quais relembramos e comentamos alguns estudos clínicos que tiveram grande impacto na Hemoterapia, vamos abordar hoje o Therapeutic platelet transfusion versus routine prophylactic transfusion in patients with haematological malignancies: an open-label, multicentre, randomised study, publicado no Lancet em 2012.

 

Naquela época, o tratamento padrão consistia na transfusão profilática de plaquetas considerando um gatilho matinal de 10.000/µL. Entretanto, estudos pilotos de centro único indicavam que a estratégia de transfusão terapêutica era viável, sem aumento no risco de sangramento maior e reduzia substancialmente o número de transfusões de plaquetas em comparação com controles históricos. Para definir se as transfusões profiláticas são realmente necessárias em pacientes que estão clinicamente estáveis e sem sangramento foi realizado este estudo multicêntrico, aberto, randomizado (por centro, sexo e idade), de grupos paralelos (A e B, randomizados separadamente).

 

Os critérios de elegibilidade foram: pacientes com idade entre 16 e 80 anos, submetidos a quimioterapia intensiva para leucemia mieloide aguda (LMA, grupo A) ou transplante autólogo de células progenitoras hematopoéticas para tratamento de doenças hematológicas (grupo B). Os critérios de exclusão foram: a) histórico de refratariedade à transfusão de plaquetas; b) sangramento maior associado à trombocitopenia, quando a razão do sangramento ainda estava em investigação; c) pacientes com coagulopatia plasmática (por exemplo, coagulação intravascular disseminada ou hiperfibrinólise); d) leucemia promielocítica em indução; e) ausência de consentimento informado; dentre outros.

 

Metodologia: foram transfundidos concentrados de hemácias em todos os pacientes, objetivando uma hemoglobina alvo mínima de 8g/dL. Foram utilizados concentrados de plaquetas desleucocitados obtidos pela metodologia pool ou aférese, ABO compatíveis, uma dose por vez. Se o sangramento continuasse, apesar da transfusão de uma dose, a critério médico, transfundia-se dose adicional de plaquetas. A presença de febre isolada, por si só, não foi considerada indicação de transfusão. Foi recomendada a transfusão profilática de plaquetas se contagem inferior a 10.000/µL em pacientes com sepse ou infecções com risco aumentado de sangramento, como infecção fúngica invasiva ou coagulopatia plasmática. A fundoscopia não foi realizada de rotina, portanto, o sangramento retiniano sem deficiência visual não foi registrado, assim como petéquias e púrpuras de pele de qualquer tamanho (consideradas clinicamente não relevantes). Novo episódio de cefaleia e outros sinais de sintomas cerebrais foram considerados os primeiros sinais de hemorragia do sistema nervoso central (SNC) e foram investigados por tomografia computadorizada (TC) no grupo terapêutico. O desfecho primário foi o número de doses de transfusões de plaquetas administradas durante um tempo de observação padronizado de 14 dias por paciente. A análise estatística foi realizada conforme a intenção de tratamento. Para a análise primária, os pacientes dos grupos A e B foram primeiro agrupados e, em seguida, analisados separadamente. O desfecho secundário de maior interesse foi sangramento clinicamente relevante; outros desfechos foram o número de transfusões de hemácias, dias com contagens de plaquetas inferiores a 20.000/µL, efeitos colaterais das transfusões, duração da internação hospitalar e sobrevida.

 

Resultados: entre 02/2005 e 03/2010, 396 pacientes foram randomizados e incluídos em oito centros de tratamento de pacientes oncológicos na Alemanha, sendo 197 no grupo que recebeu transfusão profilática (transfusão se contagem plaquetária matinal inferior a 10.000/µL) e 199 no que recebeu transfusão terapêutica (transfusão em caso de sangramento classificado como grau II ou superior pela escala da Organização Mundial de Saúde (OMS) modificada). Dos 391 pacientes analisados (5 pacientes foram excluídos), a estratégia terapêutica reduziu o número médio de transfusões de plaquetas em 33,5% (IC de 95% 22,2 – 43,1; p <0,0001) em todos os pacientes; 31,6% (18,6 – 42,6; p <0,0001) naqueles com LMA, e 34,2% (6,6 – 53,7; p = 0,0193) naqueles submetidos a transplante autólogo. Não foi observado aumento do risco de hemorragia importante em pacientes submetidos ao transplante autólogo. Naqueles com LMA, o risco de sangramento não fatal de grau 4 (principalmente SNC) aumentou. Foram registrados 15 casos de hemorragia não fatal: quatro retinianas em cada grupo de transfusão, uma vaginal e seis em SNC no grupo terapêutico. 12 pacientes morreram no estudo: dois de hemorragias em SNC fatal no grupo terapêutico e dez (cinco em cada grupo de tratamento) não relacionadas a sangramento importante. A figura 1 mostra a proporção dos pacientes com sangramento grau II ou maior por estratégia de transfusão, por tempo.

 

Figura 1: Tempo para o início do sangramento grau 2 ou superior em todos os pacientes.

 

Conclusão dos autores:

 

A estratégia terapêutica pode se tornar um novo padrão de tratamento após o transplante autólogo de células-tronco; entretanto, a transfusão de plaquetas profilática deve permanecer o padrão para pacientes com LMA. Esta estratégia de transfusão apenas em caso de sangramento deve ser utilizada apenas se a equipe for bem treinada e experiente e puder agir em tempo hábil aos primeiros sinais de sangramento do SNC.

 

Comentários:

 

Este é o primeiro grande estudo multicêntrico randomizado que compara a estratégia tradicional de transfusão de plaquetas profilática com uma estratégia terapêutica, em pacientes onco-hematológicos adultos clinicamente estáveis.

 

A estratégia terapêutica pode ser considerada viável em pacientes após transplante autólogo de células-tronco, mas não para aqueles com LMA, para os quais é necessária atenção especial pelo risco aumentado de sangramento em SNC. Esta evolução diferente nos dois grupos de pacientes avaliados pode ser explicada pelo fato de os em tratamento para LMA serem, no geral, mais gravemente enfermos do que aqueles submetidos ao transplante autólogo. Pacientes com LMA podem apresentar distúrbios subclínicos de coagulação, especialmente se estiverem na fase de indução da remissão; alteração da integridade das mucosas ou do endotélio vascular e além de estarem mais susceptíveis às infecções e à síndrome de liberação de citocinas. Estes dados em conjunto explicam o maior risco de sangramento na LMA em relação aos pacientes portadores de linfoma e mieloma, submetidos ao transplante autólogo e corroboram a continuação da estratégia de transfusão profilática de plaquetas de rotina nos pacientes portadores de LMA.

 

Quanto à utilização de rotina da estratégia terapêutica de transfusão de plaquetas, nos pacientes submetidos ao transplante autólogo, clinicamente estáveis, não apenas este, mas também outros estudos demostraram ser essa uma estratégia segura, desde que realizada por centro com equipe experiente e treinada, que tem um rotina de avaliação cuidadosa e frequente dos pacientes por meio do questionamento sobre novos sintomas associado ao exame de pele e mucosas e que é capaz de transfundir plaquetas em intervalo de tempo inferior a 4h após a sua indicação.

 

As principais lições desse estudo são: a) a transfusão profilática de plaquetas pode ser muito menos agressiva do que se acredita; b) a história clínica e o exame físico devem orientar mais as decisões sobre a transfusão de plaquetas do que qualquer limite arbitrário de contagem de plaquetas.

 

Os autores recomendam a realização de tomografia computadorizada para excluir sangramento do SNC em todos os pacientes com baixa contagem de plaquetas que apresentam novo episódio ou aumento da intensidade da cefaleia, além da realização de exame físico regular para identificação dos primeiros sinais e sintomas de sangramento. Ressaltam ainda que contagem de plaquetas é menos importante para decidir se a transfusão é justificada do que uma história de sangramento após lesão ou realização de procedimentos invasivos, presença de petéquias ou púrpuras disseminadas e a condição da pele e membranas mucosas da boca considerados por eles como bons indicadores do grau de hemostasia.

 

Fato é que a compreensão do equilíbrio entre benefício e risco das transfusões de plaquetas ainda está em evolução. Existem razões clínicas, de segurança do doador e do receptor, além das econômicas para se minimizar o uso de transfusões de plaquetas. O julgamento clínico dos pacientes, para definição de quais estão sob risco de sangramento incapacitante ou com risco de óbito, tem papel fundamental independentemente da contagem de plaquetas e deve ser sempre considerado.

 

Até a próxima!

 

Equipe erytro.

 

Bibliografia consultada:

  1. Wandt H., Schaefer-Eckart K., Wendelin K., et al. Therapeutic platelet transfusion versus routine prophylactic transfusion in patients with haematological malignancies: an open-label, multicentre, randomised study. Lancet. 2012;380(9850):1309-16. DOI: 10.1016/S0140-6736(12)60689-8.

  2. Blumberg N., Heal J.M., Phillips G.L., Phipps R.P. Platelets–to transfuse or not to transfuse. Lancet. 2012;380(9850):1287-9. DOI: 10.1016/S0140-6736(12)60983-0

  3. Tsuda K., Morita T., Tsubokura M., et al. Therapeutic platelet transfusion for hypoproliferative thrombocytopenia. Lancet. 2013;381(9868):723-4. DOI: 10.1016/S0140-6736(13)60576-0

  4. Takahashi Y., Nishikawa Y., Mori J., et al. Therapeutic platelet transfusion for hypoproliferative thrombocytopenia. Lancet. 2013;381(9868):724. DOI: 10.1016/S0140-6736(13)60577-2

  5. Wandt H., Schaefer-Eckart K. Therapeutic platelet transfusion for hypoproliferative thrombocytopenia – authors’ reply. Lancet. 2013;381(9868):724. DOI: 10.1016/S0140-6736(13)60578-4

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