Qual o melhor limiar para transfusão em pacientes em choque séptico?

por | maio 2, 2024

ABRIL 25, 2024

Dando continuidade à nossa série de blogs nos quais relembramos e comentamos alguns estudos clínicos que tiveram grande impacto na Hemoterapia, vamos abordar hoje o estudo TRISS (Transfusion Requirements in Septic Shock) publicado no New England Journal of Medicine em 2014 com o título Lower versus Higher Hemoglobin Threshold for Transfusion in Septic Shock.[1] 

Trata-se de estudo clínico multicêntrico, prospectivo, paralelo e estratificado conforme o centro e a presença ou ausência de câncer hematológico em atividade. Esse estudo foi realizado em 32 unidades de terapia intensiva (UTI) da Dinamarca, Suécia, Noruega e Finlândia entre dezembro de 2011 e dezembro de 2013. Os pacientes foram randomizados (1:1) para receber uma unidade de concentrado de hemácias desleucocitado (CHD) quando o valor de hemoglobina (Hb) fosse ≤ 7 g/dL (limiar baixo) ou ≤ 9 g/dL (limiar alto) durante a internação na UTI.

Os pacientes elegíveis foram maiores de 18 anos em UTI, que preenchiam os critérios de choque séptico e tinham concentração de hemoglobina (Hb) ≤ 9g/dL.  Os principais critérios de exclusão foram: a) já ser sido transfundido na UTI naquela internação; b) estar com síndrome coronariana aguda; c) apresentar sangramento agudo grave d) não concordar em participar do estudo ou não ser possível obter o termo de consentimento.

O objetivo primário do estudo foi avaliar a taxa de óbito 90 dias após a randomização. Os objetivos secundários consistiram: a) na necessidade de suporte de vida (uso de vasopressor ou terapia inotrópica, ventilação mecânica ou diálise nos dias 5, 14 e 28 após a randomização; b) no número de pacientes com reações transfusionais graves, durante a internação na UTI; c) no número de pacientes com eventos isquêmicos na UTI (identificado por imagem; enfarte agudo do miocárdio identificado por sintomas, alteração de eletrocardiograma ou elevação de biomarcadores que acarretaram intervenção; isquemia intestinal observado por colonoscopia ou cirurgia; isquemia em membros  d) na porcentagem de dias vivo sem o uso de vasopressores ou terapia inotrópica, ventilação mecânica ou diálise no 90º dia após a randomização. 

Resultados: 

Foram analisados dados de 998 (99,3%) dos 1005 pacientes que foram randomizados. Os dois grupos apresentavam características basais similares. O grupo limiar baixo recebeu a mediana de 1 unidade de CHD (intervalo interquartil 0 a 3) e o grupo limiar alto recebeu a mediana de 4 unidade de CHD (intervalo interquartil 2 a 7). No total 176 (36,1%) pacientes do grupo limiar alto e 6 pacientes 1,2%) do grupo limiar alto não foram transfundidos (p < 0,001). Noventa dias após a randomização 216 (43%) de 502 pacientes do grupo limiar baixo e 223 (45%) dos 496 pacientes do grupo limiar alto haviam falecido (risco relativo 0,94; intervalo de confiança de 96% 0,78 a 1,09; p = 0,44) (figura 1).


Figura 1: Curvas de sobrevida dos grupos limiar baixo e limiar alto em 90 dias

As análises dos subgrupos pré-especificados não mostraram heterogeneidade significativa no efeito do limiar de transfusão sobre a mortalidade em 90 dias entre pacientes com e sem doença cardiovascular crônica, pacientes com ≤ 70 anos de idade e aqueles com > 70 anos de idade, e pacientes com SAPS II (Simplified Acute Physiology Score) ≤ 53 e aqueles com SAPS II > 53 no início do estudo (figura 2). O número de pacientes que apresentou eventos isquêmicos, reação transfusional grave ou necessitou de suporte avançado de vida foi similar nos dois grupos.

 

Figura 2: Risco relativo de morte em 90 dias

Os autores concluíram que pacientes com choque séptico que foram transfundidos com limiar baixo (Hb de 7 g/dL), em comparação com aqueles transfundidos com limiar alto (Hb de 9 g/dL), receberam menos transfusões e tiveram em 90 dias mortalidade, uso de suporte de vida, número de dias vivos e fora do hospital semelhantes; os números de pacientes com eventos isquêmicos e reações adversas graves à transfusão na UTI também foram semelhantes nos dois grupos de intervenção.

Em uma análise posterior2, os autores investigaram o efeito da intervenção em pacientes com comorbidades graves (doença pulmonar crônica, doença oncohematológica ou câncer metastático), em pacientes submetidos a cirurgia (eletiva ou aguda) e em pacientes com choque séptico conforme definido pelo novo consenso: lactato acima de 2 mmol/L e necessidade de vasopressores para manter pressão arterial média acima de 65 mmHg. As características iniciais foram semelhantes entre os dois grupos. Não houve diferenças no efeito da intervenção na mortalidade em 90 dias em pacientes com doença pulmonar crônica (p = 0,31), malignidade hematológica (p = 0,47), câncer metastático (p = 0,51), naqueles que foram submetidos a cirurgia (p = 0,99) ou em pacientes com choque séptico pela nova definição (p = 0,20). Ou seja, não foi observado benefício em nenhum subgrupo de transfusão com um limiar de Hb de 9g/dL.

Comentários: 

Este estudo foi publicado 15 anos após o TRICC,3 que foi o 1º estudo a avaliar o uso de critérios mais restritivos de transfusão, e nos forneceu a evidência definitiva que o uso do limiar para se avaliar a transfusão de 7g/dL de Hb é seguro, pois não causa danos aos pacientes e reduz em torno de 50% o número de CH transfundidos.4 Outros estudos que compararam limiares restritivos contra liberais de transfusão evidenciaram aumento de mortalidade, de edema pulmonar e de falência de múltiplos órgãos nos pacientes tratados com critérios liberais de transfusão4 o que não foi observado neste trabalho.1 Cabe ressaltar que os pacientes do estudo TRISS foram todos transfundidos com CH desleucocitados o que sabidamente reduz os efeitos adversos à transfusão, especialmente a imunomodulação, o que pode ter impactado na mortalidade dos pacientes.1

O guia atual de manejo de pacientes com sepse5 orienta a utilização de protocolos restritivos de transfusão (recomendação forte, evidência de moderada qualidade) e dentre os principais estudos clínicos citados para embasar tal recomendação encontram-se o TRISS1 e o TRICC3 o que reforça a importância destes dois estudos que foram definidores de conduta em Hemoterapia.

Até a próxima!

Equipe erytro.

Bibliografia consultada:

  1. Holst LB, Haase N, Wetterslev J, et al; TRISS Trial Group; Scandinavian Critical Care Trials Group. Lower versus higher hemoglobin threshold for transfusion in septic shock. N Engl J Med. 2014 Oct 9;371(15):1381-91. DOI: 10.1056/NEJMoa1406617
  2. Rygård SL, Holst LB, Wetterslev J, et al; TRISS trial group; Scandinavian Critical Care Trials Group. Higher vs. lower haemoglobin threshold for transfusion in septic shock: subgroup analyses of the TRISS trial. Acta Anaesthesiol Scand. 2017 Feb;61(2):166-175. DOI: 10.1111/aas.12837
  3. Hébert PC, Wells G, Blajchman MA et al. A multicenter, randomized, controlled clinical trial of transfusion requirements in critical care. Transfusion Requirements in Critical Care Investigators, Canadian Critical Care Trials Group. N Engl J Med. 1999 Feb 11;340(6):409-17. DOI: 10.1056/NEJM199902113400601
  4. Hébert PC, Carson JL. Transfusion threshold of 7 g per deciliter–the new normal. N Engl J Med. 2014 Oct 9;371(15):1459-61. DOI: 10.1056/NEJMe1408976
  5. Evans L, Rhodes A, Alhazzani W, et al. Surviving sepsis campaign: international guidelines for management of sepsis and septic shock 2021. Intensive Care Med. 2021 Nov;47(11):1181-1247. DOI: 10.1007/s00134-021-06506-y

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