Relembrando o estudo TRACS.
Dando continuidade à nossa série de blogs, nos quais relembramos e comentamos alguns estudos clínicos que tiveram grande impacto na Hemoterapia, vamos abordar hoje o Estudo TRACS, publicado no JAMA em 2010.
Trata-se de estudo de não inferioridade, realizado no INCOR em São Paulo, prospectivo, randomizado, controlado que teve como objetivo definir se a estratégia restritiva de transfusão de hemácias (manter hematócrito ≥ 24 %, do início da cirurgia à alta do CTI) era tão segura quanto à liberal (hematócrito ≥ 30 %), em pacientes submetidos à cirurgia cardíaca.
Foram elegíveis pacientes com indicação de cirurgia eletiva de revascularização miocárdica ou de troca valvar, isolada ou em combinação. Os critérios de exclusão foram: a) idade < 18 anos; b) cirurgia sem by-pass cardiopulmonar; c) procedimento de emergência; d) ressecção de aneurisma; e) anemia crônica; f) plaquetopenia; g) coagulopatia; i) participação em outro estudo, dentre outros. O desfecho primário foi composto e incluiu a mortalidade em 30 dias por todas as causas e morbidade grave (choque cardiogênico, síndrome do desconformo respiratório agudo, insuficiência renal com necessidade de diálise ou hemofiltração) durante a internação. O desfecho secundário incluiu complicações respiratórias, cardíacas, neurologias, infecciosas ou inflamatórias, sangramento com indicação de reoperação e dias de internação. Foi avaliada ainda a incidência de transfusão de concentrado de hemácias (CH), o número de CH transfundidos, fatores preditivos de transfusão de CH e os efeitos da transfusão na evolução dos pacientes. Foram utilizados CH não desleucocitados, com poucos dias de coleta (mediana 3 dias). As características de base dos pacientes e as variáveis relacionadas ao procedimento cirúrgico foram similares entre os grupos. A margem de não inferioridade foi pré-definida em -8%, isto é, aumento clinicamente significativo na ocorrência do desfecho composto em até 8%.
Resultados: Entre 02/2009 e 02/2010, 1765 pacientes foram elegíveis e 512 randomizados e incluídos sendo 257 (253 incluídos na análise primária) no grupo tratado com protocolo liberal e 255 (249 incluídos na análise primária) no restritivo de transfusão. A concentração média de hemoglobina (Hb) foi 10,5 g/dL (95% intervalo de confiança – CI, 10,4 – 10,6) no grupo tratado com a estratégia liberal e 9,1 g/dL (95% CI, 9,0 – 9,2) no grupo tratado com a estratégia restritiva (p < 0,001), figura 1. 198/253 (78%) pacientes do grupo tratado com a estratégia liberal e 118/249 (47%) do grupo tratado com a estratégia restritiva foram transfundidos (p < 0,001). O número total de CH transfundido foi 613 no grupo liberal e 258 no grupo restritivo (p < 0,001). Não houve diferença entre os grupos quanto à transfusão de plasma, plaquetas ou crioprecipitado.
Figura 1: Hemoglobina média durante o estudo, conforme a estratégia de transfusão utilizada. p < 0,05 entre os grupos em todos os pontos avaliados. A barra de erro indica o intervalo de confiança de 95%. ICU = unidade de tratamento intensivo.
A ocorrência do desfecho primário foi similar entre os grupos (10% no liberal x 11 % no restritivo, sendo a diferença entre os grupos de 1% [95% IC, -6% a 4%]; (p = 0,85), figura 2.
Figura 2: Curvas Kaplan-Meier com estimativa de sobrevida em 30 dias por estratégia de transfusão. Considerou-se como tempo zero, 12 h antes da cirurgia, logo após a randomização. Razão de risco 1,28 [95% CI, 0,6 – 2,73]; p = 0,99) para a estratégia restritiva vs liberal.
O número de CH transfundidos foi um fator de risco independente de complicações clínicas ou óbito em 30 dias (razão de risco para cada unidade adicional transfundida 1,2 [95% CI, 1,1 – 1,4]; p = 0,002), figura 3.
Figura 3: Curvas Kaplan-Meier com estimativa de sobrevida em 30 dias com base no número de CH transfundidos. Considerou-se como tempo zero, 12 h antes da cirurgia, logo após a randomização e zero CH transfundido como categoria de referência. A razão de risco foi 2,97 [95% CI, 0,96 – 9,21] (p = 0,06) de 1 para 2 unidades de CH; 2,78 [95% CI, 0,75 – 10,35] (p = 0,13) de 3 para 4 unidades de CH; 5,82 [95% CI, 1,30 – 26,02] (p = 0,02) de 5 para 6 unidades de CH e 9,70 [95% CI, 2,17 – 43,34] (p = 0,003) para mais de 6 unidades transfundidas.
Conclusão dos autores: Entre os pacientes submetidos à cirurgia cardíaca, a utilização de estratégias restritivas de transfusão é tão segura quão às liberais quanto aos desfechos todas as causas de mortalidade em 30 dias ou morbidade grave.
Comentários:
Trata-se de estudo brasileiro realizado pela equipe do INCOR, da Universidade de São Paulo (USP), centro de referência nacional e, por consequência, responsável pelo tratamento de pacientes com perfil mais grave, com maior potencial de complicações. Acredita-se que este foi o primeiro estudo prospectivo, randomizado que testou a hipótese de que o valor de hematócrito de 24% não é inferior ao de 30% para se indicar transfusão durante a realização e no pós-operatório de cirurgias cardíacas.
As principais críticas a este estudo referem-se ao fato de ter sido realizado em centro único, que utilizou CH não desleucocitado e com poucos dias de coleta, além da não utilização de equipamentos de recuperação intraoperatória de células, o que reflete a realidade brasileira, mas difere da realidade mundial, e limita a sua aplicabilidade. Apesar disso, os resultados do estudo indicaram que as estratégias restritivas de transfusão são no mínimo tão seguras quanto às liberais, e não houve evidência de isquemia ou hipóxia tissular. Naquela época, havia uma alta variabilidade nos critérios de transfusão dos pacientes submetidos à cirurgia cardíaca nos diversos centros. Apesar de suas limitações, este estudo já foi citado em mais de 200, inclusive em meta-análises. Seus achados foram corroborados por outros estudos clínicos randomizados que em conjunto nos mostram que, em hemoterapia, em diversas situações, menos é mais.
Até a próxima!
Equipe erytro.
Bibliografia consultada:
1. Hajjar LA, Vincent J, Galas FRBG, et al. Transfusion Requirements After Cardiac Surgery: The TRACS Randomized Controlled Trial. JAMA. 2010; 304(14):1559–1567. doi:10.1001/jama.2010.1446
2. Shander AS, Goodnough LT. Blood Transfusion as a Quality Indicator in Cardiac Surgery. JAMA. 2010; 304(14):1610–1611. doi:10.1001/jama.2010.1483
3. Shehata N, Mazer CD, Thorpe KE. Blood Transfusion and Cardiac Surgery. JAMA. 2011; 305(4):357–359. doi:10.1001/jama.2011.14
4. Mikroulis D, Papanas N, Vretzakis G. A restrictive perioperative transfusion strategy does not increase all-cause mortality (30 days) or morbidity compared with a liberal approach in patients undergoing cardiac surgery. Evid Based Med. 2011 Aug; 16(4):107-8. doi: 10.1136/ebm1186.
5. Whitman GJR, DiSesa VJ. Transfusions in Cardiac Surgery. Arch Surg. 2011; 146(4):481–482. doi:10.1001/archsurg.2011.48
6. Carson JL, Stanworth SJ, Roubinian N, et al. Transfusion thresholds and other strategies for guiding allogeneic red blood cell transfusion. Cochrane Database Syst Rev. 2016 Oct 12;10(10):CD002042. doi: 10.1002/14651858.CD002042.pub4.